quarta-feira, 27 de abril de 2016

As notas de um livro: "Memória por Correspondência" de Emma Reyes

Faz tempo que não apareço por aqui (com exceção da passadinha de uma vez por mês para colocar as fotos dos encontros do Leia), mas não é por falta de vontade. A vida tá corrida, trabalho e TCC consumindo todo o meu tempo, mas a saudade de escrever acaba falando mais alto!

E dessa vez eu tive um incentivo. Ganhei "Memória por correspondência" de um amigo que, ao me apresentar o livro, pediu: quero saber o que você achou desse aqui. Aí vamos juntando a fome com a vontade de comer, não é mesmo? :)

Li a autobiografia epistolar de Emma Reyes em um dia de espera entre aeroportos e ônibus. Tinha mais três livros e o Kindle junto comigo para revezar mas não consegui largar suas memórias. É um livro ilustrado com algumas de suas obras que conta, em 23 cartas endereçadas a seu amigo, o historiador Germán Arciniegas, a história de uma infância e juventude de tristeza e abandono. As cartas foram enviadas por Emma a Germán entre 1969 e 1999. Houve, nestes 30 anos, um intervalo de 25 sem cartas após Germán quebrar a confidencialidade das cartas, mostrando-as para, o também amigo de Emma, Gabriel García Marques que escreveu para a artista elogiando o seu trabalho e pedindo a ela que continuasse a escrever. 


Segundo o prefácio, notas e outros textos que o livro traz junto com as cartas, ela tinha dificuldades em encarar seu passado. Suas cartas contam uma infância, muito pobre, junto à irmã e à moça chamada María que cuidava delas e de quem só se lembra "de sua vasta cabeleira negra que, quando estava solta, cobria-a completamente e me fazia gritar de medo e me esconder debaixo da única cama", e de algumas outras pessoas que, em algum momento, viveram junto com as três. Tratam também do período em que viveu no convento para onde foi junto com a irmã bem antes da idade preestabelecida.


Sua infância e juventude foram muito pobres e marcados, principalmente, pelo abandono. No que parecem ser as lembranças iniciais de sua infância, Emma começa a primeira carta contando como se lembra de passar os dias na rua. E carta após carta, seus relatos vão mostrando que, em quase todos os momentos, ela e Helena passaram por muitos momentos sombrios, de dificuldades, muita incerteza, solidão e desamparo. As constantes mudanças de cidades e - de humor de María - eram exaustivas e geralmente não proporcionavam grandes transformações em seu padrão de vida.

"Se é verdade que há fatos de nossa infância que nos marcam a vida inteira, devo dizer que essa famosa carroça que nos separou da casinha no bairro de San Cristóbal (padroeiro dos viajantes) para sempre foi o começo de uma vida que teria como símbolo e como escola a inclemência dos duros caminhos da América e, mais tarde,dos fabulosos caminhos da Europa." p. 29

O tempo em que passou no convento, apesar de menos austero, foi algo ainda mais solitário do que o período em que vivia sob os cuidados de María, quando acabava ficando em casa ou na rua e convivia com outras pessoas. As colegas do convento se mostraram, muitas vezes, cruéis e distantes. O convento a separou do "resto do mundo", como afirmou Emma. Ela não tinha acesso a qualquer outra pessoa que não as que viviam ali e o padre responsável por algumas funções religiosas do convento.

"Três fechaduras, dois cadeados grandes, uma correte e duas grossas trancas de madeira fechavam a primeira porta que nos separava do resto do mundo. A segunda porta tinha apenas uma fechadura e um cadeado." p.83

Apesar de ser uma história muito penosa, em sua narrativa, Emma não apela para o sentimentalismo, opta por descrever sobriamente e com impressionante riqueza de detalhes. Esta forma de escrita, com certeza alimentou minha empatia pela história. Mesmo contando uma história tão cheia de adversidades, desastres, dificuldades e tristezas a narrativa de Emma é envolvente. Não queremos largar o livro porque precisamos acompanhá-la. Mais do que saber o que acontece no final (mesmo porque já sabemos um pouco), a leitura nos faz querer segurar as mãos da menininha vesga que Emma volta a ser nas páginas e sermos conduzidos por ela para dentro de si mesma. 


Além de sua própria história, Emma nos leva para dentro da Colômbia dos anos 1930 para nos mostrar a realidade de uma parcela significativa da sociedade colombiana. A riqueza de detalhes com que ela nos presenteia ao falar de si mesma e de seus sentimentos, também é marcante quando Emma nos apresenta o seu país e as pessoas com quem conviveu. Conhecemos pessoas que são descritas, por vezes, tão esmiuçadamente, que nos parece poder enxergá-los diante dos olhos. Acredito que esta seja uma das principais características (além da fluidez), que fazem com que seja tida como uma hábil contadora de histórias.

A descrição que Emma Reyes faz da sociedade colombiana de sua infância, além de norteada por sua perspectiva, é permeada pela presença de mulheres. Poucos homens têm papel marcante em sua vida e seu cotidiano durante toda a sua narrativa. É fácil perceber a diferença entre o modo de vida dos homens e das mulheres presentes. Às mulheres colombianas é reservado o espaço privado da casa, do convento e o trabalho doméstico enquanto os homens ocupam os espaços públicos. Alguns dos homens que aparecem em sua história, porém, têm o poder de determinar seu destino.

"Foi Roberto quem lhe propôs ir para Guateque e lhe deu uma carta de recomendação na qual pedia ao dono da fábrica de chocolate La Ecpecial que confiasse a loja da cidade a ela" (este parágrafo se refere a María) p.38

Há ainda um quê de realismo fantástico em suas cartas que parecem não combinar com o gênero de autobiografia, mas que se casa perfeitamente com o seu retorno à infância e seus desejos infantis de escape da realidade.

Eu não conhecia Emma Reyes, depois da leitura fui buscar um pouco mais sobre esta artista plástica e encontrei o seu site, de onde tirei as obras que estão ilustrando o blog nesta resenha. Emma, falecida há mais de dez anos, além da publicação póstuma de suas correspondências, composição que foi considerada um dos livros do ano quando de sua publicação, em 2012, na Colômbia, deixa também o legado de suas pinturas.

Emma Reyes e Germán Arciniegas

Emma Reyes

Título original: MEMORIA POR CORRESPONDENCIA
Autora: Emma Reyes
Tradução: Hildegard Feist
Capa: Bruno Romão
Editora: Companhia das Letras

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